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17 de maio de 2012

Os triângulos negros


por rdelton.


Lentamente ela se ajoelha e esfrega as mãos protegendo-as contra o frio, a culpa e o sofrimento. De súbito, sente a garganta arder e, por inércia, tosse duas vezes. Simula, em seguida, uma onomatopéia de dor aproveitando para cobrir melhor seu pescoço. Não era habitual tão baixa temperatura em uma nevada naquele lugar, mas aquela noite não era como as outras.

Havia frio, neve, umidade e sangue.

Uma sensação de desespero a possui ao observar o chão desde outra perspectiva. Um massacre de corpos mutilados e baleados rodeavam seus pés. Foi nesse momento que seu espírito fraquejou… Perdeu a autoridade sobre suas pernas ao ordenar que parassem de tremer. Uma avalanche de pertubações invadiu sua cabeça e a aflição terminou por convencê-la a voltar ao solo.

Então caiu.

Ainda embriagada pela dor e agonia suas pupilas dilatam, seu pulmão exige mais oxigênio e o estômago recusa seguir usufruindo do que não presta.

De repente passos.

Silêncio.

Os ruídos firmes e espaçados trazem a morte e o ódio consigo. Percebendo a iminente chegada dos verdugos se abstém de respirar, aparentando um defunto mais entre todos os outros ao redor. Logo, nota que o ar impregna agonia, danação e fedor a coturno.

Aos poucos segundos é inebriada pela pólvora recém queimada da Sturmgewehr 44 que passeiava cuspindo convites ao inferno com estabilidade atípica e pragmática contudência.

Houve euforia entre os cadáveres ao contacto com os disparos. A sinfonia que regiam os fuzis infudiam medo e era ensurdecedora. Já não sabia se o sangue que escorria pelo sua têmpora era seu ou alheio. Lhe apetecia que todo aquele pesadelo terminasse ali, que todos os gritos em homenagem ao Reich fossem cessados e que a melodia de suas ferramentas calasse em consequência.

Ao notar que a violência rejeitava o desejo, seu coração acelerou com a mesma intensidade das balas. Sabia que seria seu fim e já havia perdido a conta de quantos pedaços foram  decepados de seu corpo durante o festival de projéteis que ecoavam contra todos.

Foi quando girando sua cabeça, observou as faces de pavor empapadas de rubro pela chacina. Rostos de pânico e olhares perdidos de crianças e idosos estavam entre o assassínio… O eufemismo apelidado de Solução Final não licenciava clemência aos não-arianos.

Seu olhar concentra-se no céu por alguns instantes. Os flocos de neve caiam com uma coreografia magnífica louvando a beleza da Mãe-Natureza, e então ela sonha…

Sonha com um dia onde poderia ser livre e autónoma…

Sonha com o tempo em que o irascível seria útil e pacífico…

Quando a aversão daria protagonismo a tolerância… E quando os contrastes fossem transformados em príncipios.

Ela sonha… E sonhando com a vida e todo seu esplendor ela fecha os olhos aguardando o inevitável. E ensaia um suspiro ao relembrar a epístola que deixou como despedida;

Queridos meus,
Sinto minha alma cansada, apesar de saber que o que farão conosco me aliviará o espírito, expulsará a agonia e a fome de mim… E me matará em conclusão.

Amanhã pela noite seremos fuzilados por ser diferentes da sociedade ideal. Por gritar por liberdade e querer dar ouvidos aos moribundos. Por fazer escolhas sentimentais duvidosas ou por nascer no país errado… Pagaremos, por estar vivos, com uma morte cruel.


Amados, lembro-me ainda de seus conselhos e levarei todos em meu coração apesar de não ter dado ouvidos a nenhum deles. Não estou arrependida ou com medo, porém.


Tenho vontade de viver!


Quisera ser livre como o ar ou as folhas. Não direi como meus colegas fizeram, aos seus familiares, que está tudo bem.


Não é verdade!


Está tudo errado. E aqui, aonde estou, posso ver o distorcida que pode chegar a humanidade com seus interesses.


Quero que entendam bem isso… Eu quero viver! Nenhum sentimento é tão grande como o que eu tenho agora.


Sei que estareis comigo em minha última hora e também depois disso.


Com carinho,

As sensações intensificam e afloram fazendo-a entregar-se a mórbida realidade. Então ouve, baixinho, a palavra “Gnadenschuss” acompanhada de sossego e paz.

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