Bem, hoje posto mais um texto do colaborador Manuel Cunha Pinto. A maioria dos textos dele postados aqui no Fronteiras no Tempo já foram publicados em outros veículos, como o jornal da faculdade onde ele estuda (IMESB-VC), em Bebedouro-SP, e no jornal de sua cidade, Monte Azul Paulista. Esses escritos foram gentilmente enviados para mim para que eu desse minha apreciação, como gostei perguntei a ele se poderia publicá-los aqui, o que aceitou de bom grado. Aproveito a oportunidade para agradece-lo por isso.
O texto fala de um tal João das Cordas, jardineiro/vidente, que vive no interior de São Paulo de maneira bem interessante, pois cruza insistentemente e acredito intencionalmente a fronteira entre o texto jornalístico objetivo e a crônica, chegando assim a um bom resultado, conduzindo o leitor suavemente de um cenário de filme argentino (no bom sentido) às contingências cotidianas bem brasileiras. Vale a leitura.
O texto fala de um tal João das Cordas, jardineiro/vidente, que vive no interior de São Paulo de maneira bem interessante, pois cruza insistentemente e acredito intencionalmente a fronteira entre o texto jornalístico objetivo e a crônica, chegando assim a um bom resultado, conduzindo o leitor suavemente de um cenário de filme argentino (no bom sentido) às contingências cotidianas bem brasileiras. Vale a leitura.
Seu João: além da lenda do cordão
Manuel Cunha Pinto
Manuel Cunha Pinto
É fim de uma tarde de verão na cidade de Monte Azul Paulista, nordeste do estado. Apesar do clima quente sugerir uma atmosfera de alegria e vida, dois jovens sofrem. O primeiro acredita que, dois dias antes, um espírito mal invadiu seu apartamento em Ribeirão Preto, a cem quilômetros dali. Desde então, diz sentir-se estranho, inquieto, assombrado por pensamentos mórbidos. O segundo, já conhecido na região por seu temperamento destrutivo e arruaceiro, tem um problema mais complicado. Usuário de drogas, acaba de separar-se da esposa, com quem casou há alguns meses, quando acendeu as esperanças de sua família para uma nova vida. Mesmo com uma expressão facial nula, nota-se que há algo de errado com ele. É como naqueles desenhos animados nos quais um personagem, tomado pelo azar, carrega sobre si uma nuvem escura de tempestade.
Na frente daquela casa aos pedaços, certamente a em pior estado da rua, junto dos dois rapazes há um terceiro, que, além de uma dificuldade com matemática, não carrega consigo nenhum problema sério. É amigo de ambos e só está lá para testar o poderio sobrenatural de um senhor que, dentro da casa, atende uma mulata de seus trinta e poucos anos. Depois de uma espera de cerca de dez minutos, a mulher sai e os três entram. O senhor pede que sentem. Então seus olhos azuis fixam um horizonte imaginário e ele invoca proteções espirituais, as quais ele chama de correntes, que são muito democráticas, geograficamente falando. Tem correntes baianas, africanas, indianas, entre outras. Protegido, abençoa dois dos rapazes num ritual já famoso: passa em volta de seus pescoços uma corda idêntica àquelas que vaqueiros usam nos campos, só que menor, e ordena que qualquer força maligna ali presente suma. Como num passe de mágica, os rapazes saem de uma espécie de transe e têm as expressões serenas. O único a não ser bento, justamente o que fingia ter algum problema, parece impressionado. Olha para o velho e diz: “Mas o senhor não me benzeu...”, e ele então responde: “Deve ser porque você não tem nada”.
Tente achar no Brasil um nome mais comum que este: João. Tudo bem, não se martirize, é realmente um nome bem popular. Agora pense no sobrenome Santos. Mas agora tenha mais cuidado para não se enganar. Na carteira de identidade deste monteazulense nascido em 1926, o nome muito simples é igualmente sugestivo e cercado de mistérios e experiências pouco comuns. Seu João do Cordão, como é conhecido, por causa do método de trabalho, nasceu outra pessoa. E foi se transformando, feito peça de teatro de um ator só, em várias outras durante a vida. Era uma criança agitada, mais do que o normal até para crianças agitadas. Trabalhou com gado na adolescência, até os vinte e dois anos. Então foi para a capital São Paulo, onde trabalhou durante dezoito anos no ramo de venda de carros. Oito anos na Ford e mais dez na General Motors. Até aí, Seu João desconhecia seus dotes mediúnicos, o que foi uma pena, pois poderia muito bem ter sido o vendedor mais fenomenal da história. É que, nos tempos atuais, uma grande parte das cerca de 60 pessoas que são atendidas por ele diariamente vem pedir conselhos financeiros, e isso inclui a compra de automóveis, propriedades rurais e afins.
Cansado da vida sufocante de São Paulo, o médium que até então não era, resolveu voltar para Monte Azul. Foi quando começou a tomar comunhão, e o “coisa-ruim” que insistia em aparecer-lhe na vista desde que era pequeno sumiu. Recebeu um recado divino que lhe incumbia a missão de orientar as pessoas. E a partir daí foi construindo a carreira que lhe permite dizer que é o mais conhecido guia espiritual da cidade interiorana de aproximadamente vinte mil habitantes. Além dos conselhos financeiros já citados, Seu João ajuda pessoas com problemas de coluna, outras que se dizem possuídas por exus, e também mocinhas aflitas para saber se seus namoros vão transformar-se em casório. Neste caso a metodologia é diferente. Primeiro ele pede que a garota feche suas mãos suadas de nervosismo, cada uma segurando numa extremidade da corda. Em seguida pede que pense no destinatário do seu amor. Então saúda alguma divindade e joga o cordão no pavimento vermelho e quebradiço de sua casa. Pronto: está estampada na forma que se posta a corda a sorte do casal, seja ela boa ou má. “Não dá para explicar a leitura”, diz Seu João, que já foi, ele próprio, vítima das desventuras do amor. Sua mulher o traiu e o casamento acabou. Desiludido, não gosta muito de falar a respeito. Mas garante que a amargura não influencia no resultado das consultas sentimentais. “Diferente de muitos que vêm aqui, eu não digo nada além da verdade”, garante.
Como não poderia deixar de ser numa vida recheada de reviravoltas, há vinte e dois anos Seu João aprendeu outro ofício. Porque, no final das contas, não cobra nada para exercer a atividade espiritual. Virou jardineiro, trabalho que exerce diariamente das sete às quinze horas, para depois se concentrar como guia até anoitecer. Afirma com orgulho que nunca deixou caso algum sem resolução, mesmo os mais difíceis. “Uma vez veio uma mulher tão possuída que subia pelas paredes e dava cambalhotas desta altura”, diz, indicando com a mão direita algo perto de um metro e noventa. Já para o público, a opinião sobre a atuação de Seu João é tão diversa quanto sua vida. “Ele cuida do jardim lá de casa, deixa sempre lindo” diz uma moça gordinha. “Mas, por outro lado, ele me falou há algum tempo que eu ia arrumar namorado logo, e até agora nada”, ressalva, com um ar de desapontamento. Outra, já bem mais velha, lamenta por não ter consultado o guia antes do casamento. “Resolvi morar com um cara que logo revelou ser outra pessoa, um bêbado e maconheiro. Acabou com minha vida. Quem sabe se eu tivesse vindo no tiozinho antes, não seria diferente?”, diz, com os olhos baixos. Seu João é assim, uma pessoa confiante e misteriosa, que ao fechar a porta para enfim descansar, atesta com conhecimento de causa e um bilhete da Mega Sena no bolso da camisa: “Todo mundo pode mudar a vida, o conselho é só um empurrãozinho”.
Na frente daquela casa aos pedaços, certamente a em pior estado da rua, junto dos dois rapazes há um terceiro, que, além de uma dificuldade com matemática, não carrega consigo nenhum problema sério. É amigo de ambos e só está lá para testar o poderio sobrenatural de um senhor que, dentro da casa, atende uma mulata de seus trinta e poucos anos. Depois de uma espera de cerca de dez minutos, a mulher sai e os três entram. O senhor pede que sentem. Então seus olhos azuis fixam um horizonte imaginário e ele invoca proteções espirituais, as quais ele chama de correntes, que são muito democráticas, geograficamente falando. Tem correntes baianas, africanas, indianas, entre outras. Protegido, abençoa dois dos rapazes num ritual já famoso: passa em volta de seus pescoços uma corda idêntica àquelas que vaqueiros usam nos campos, só que menor, e ordena que qualquer força maligna ali presente suma. Como num passe de mágica, os rapazes saem de uma espécie de transe e têm as expressões serenas. O único a não ser bento, justamente o que fingia ter algum problema, parece impressionado. Olha para o velho e diz: “Mas o senhor não me benzeu...”, e ele então responde: “Deve ser porque você não tem nada”.
Tente achar no Brasil um nome mais comum que este: João. Tudo bem, não se martirize, é realmente um nome bem popular. Agora pense no sobrenome Santos. Mas agora tenha mais cuidado para não se enganar. Na carteira de identidade deste monteazulense nascido em 1926, o nome muito simples é igualmente sugestivo e cercado de mistérios e experiências pouco comuns. Seu João do Cordão, como é conhecido, por causa do método de trabalho, nasceu outra pessoa. E foi se transformando, feito peça de teatro de um ator só, em várias outras durante a vida. Era uma criança agitada, mais do que o normal até para crianças agitadas. Trabalhou com gado na adolescência, até os vinte e dois anos. Então foi para a capital São Paulo, onde trabalhou durante dezoito anos no ramo de venda de carros. Oito anos na Ford e mais dez na General Motors. Até aí, Seu João desconhecia seus dotes mediúnicos, o que foi uma pena, pois poderia muito bem ter sido o vendedor mais fenomenal da história. É que, nos tempos atuais, uma grande parte das cerca de 60 pessoas que são atendidas por ele diariamente vem pedir conselhos financeiros, e isso inclui a compra de automóveis, propriedades rurais e afins.
Cansado da vida sufocante de São Paulo, o médium que até então não era, resolveu voltar para Monte Azul. Foi quando começou a tomar comunhão, e o “coisa-ruim” que insistia em aparecer-lhe na vista desde que era pequeno sumiu. Recebeu um recado divino que lhe incumbia a missão de orientar as pessoas. E a partir daí foi construindo a carreira que lhe permite dizer que é o mais conhecido guia espiritual da cidade interiorana de aproximadamente vinte mil habitantes. Além dos conselhos financeiros já citados, Seu João ajuda pessoas com problemas de coluna, outras que se dizem possuídas por exus, e também mocinhas aflitas para saber se seus namoros vão transformar-se em casório. Neste caso a metodologia é diferente. Primeiro ele pede que a garota feche suas mãos suadas de nervosismo, cada uma segurando numa extremidade da corda. Em seguida pede que pense no destinatário do seu amor. Então saúda alguma divindade e joga o cordão no pavimento vermelho e quebradiço de sua casa. Pronto: está estampada na forma que se posta a corda a sorte do casal, seja ela boa ou má. “Não dá para explicar a leitura”, diz Seu João, que já foi, ele próprio, vítima das desventuras do amor. Sua mulher o traiu e o casamento acabou. Desiludido, não gosta muito de falar a respeito. Mas garante que a amargura não influencia no resultado das consultas sentimentais. “Diferente de muitos que vêm aqui, eu não digo nada além da verdade”, garante.
Como não poderia deixar de ser numa vida recheada de reviravoltas, há vinte e dois anos Seu João aprendeu outro ofício. Porque, no final das contas, não cobra nada para exercer a atividade espiritual. Virou jardineiro, trabalho que exerce diariamente das sete às quinze horas, para depois se concentrar como guia até anoitecer. Afirma com orgulho que nunca deixou caso algum sem resolução, mesmo os mais difíceis. “Uma vez veio uma mulher tão possuída que subia pelas paredes e dava cambalhotas desta altura”, diz, indicando com a mão direita algo perto de um metro e noventa. Já para o público, a opinião sobre a atuação de Seu João é tão diversa quanto sua vida. “Ele cuida do jardim lá de casa, deixa sempre lindo” diz uma moça gordinha. “Mas, por outro lado, ele me falou há algum tempo que eu ia arrumar namorado logo, e até agora nada”, ressalva, com um ar de desapontamento. Outra, já bem mais velha, lamenta por não ter consultado o guia antes do casamento. “Resolvi morar com um cara que logo revelou ser outra pessoa, um bêbado e maconheiro. Acabou com minha vida. Quem sabe se eu tivesse vindo no tiozinho antes, não seria diferente?”, diz, com os olhos baixos. Seu João é assim, uma pessoa confiante e misteriosa, que ao fechar a porta para enfim descansar, atesta com conhecimento de causa e um bilhete da Mega Sena no bolso da camisa: “Todo mundo pode mudar a vida, o conselho é só um empurrãozinho”.
gostei de saber
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